Fernanda Charret
Notas de uma historieta
Então você me olha assim, olhos de baleia sempre aguados, e diz que me assistir comer comida japonesa é um evento. Sim, porque há alguma coisa sobre estufar as bochechas. Mais do que isso: cada peça é uma unidade coerente; o molho pegajoso feito mel. Você diz que é sobre os barulhinhos que eu faço, as caretas e os olhos que se reviram, porque eu não posso conter a tenacidade, como se fosse uma pista para o mapeamento do meu orgasmo.
Há de ser superada a surpresa da consistência e textura. Você também me provocou um estardalhaço, muito sutil—tento me colocar nesse lugar de uma narrativa incorruptível. Redobrar-me a contento é como cutucar o leitor por repetidas vezes, esse de olhos vazios boiando na ruptura do poema. Concatenar as ondas do mar como se elas não fossem ao encontro de sua quebra.
Basta que uma de nós seja reprimida até os ossos e a comoção é desdobrada como um bebê aprendendo a andar que de repente acha mais conveniente rolar por aí. Dá para ouvir as gargalhadas? É mais ou menos assim quando você pula em cima de mim, tão facilmente dada e decidida, como se eu não fosse uma piscina rasa demais. Eu sou uma piscina rasa demais, o que você só vai se dar conta meses depois de já ter desperdiçado sua credibilidade como um shampoo caído e aberto no chão do box-- eu diria ao leitor, então ela me olha assim, com olhos de baleia sempre aguados, e diz que me assiste comer comida japonesa. Eu desejo profundamente que ela me morda e prove da Unidade Coerente de um uramaki de haddock e manga.
O ar de perfeição e controle é mesmo elusivo. A certeza de sempre uma possibilidade nas reticências. Você negocia a custo do que não te importa muito. E eu convencida do pecado. Nenhum bom desfecho possível. A lucidez é minha maior ambição, enquanto a sua são reticências impertinentes com ares de quem sonha acordado. Ainda sobre a mesa: os copos de cerveja preta. Algo de muito perverso reside nessas bolhinhas de ar. Este é o feio no qual se acredita. Então fotos do seu casamento pelos móveis. Assinatura do Papa na certidão de casamento. Moldura de brilho. Vinho chileno. Você que parou de comer para caber num vestido branco de casamento, agora manchado do mesmo vinho chileno.
Filme infantil com a sua filha. Ela me olhando de rabo de olho, desconvencida da minha legitimidade—e eu nada além de um iceberg acidental.
Aquele dia no seu aniversário, você enciumada da sua amiga. Você e seu fogo consumidor. Direi ao leitor que você me expulsou de casa naquele dia. Farsante, eu não passo muito de uma sem vergonha. Como devo dizer que tocar e chupar uma buceta pela primeira vez é como...?
Há de ser superada a surpresa da consistência e textura. Sushi sem o teryaki meloso. Sashimi. E depois a intimidade quente e líquida.
E finalmente depois que você tentou se matar. O prejuízo na lateral do carro atritando contra a cimentada divisão entre caminhos. O que você esperava encontrar do outro lado? Como alguém indiferente eu não pude te explicar que morrer por minha causa não é interessante. Nunca mais vi nada além de cimento por entre minhas veias. O leitor se perde por entre esses fragmentos de uma narrativa corruptível? O leitor confia em mim? Inspiro confiança ou... Uma olhadela negligente? Toco muito na palavra OLHO e estou farta.
Então está mais para uma historieta assim nada sensual. Parcamente arrisco uma coisa excêntrica do tipo amar como uma Villanelle. Sua língua é deveras explosiva. Como pode ele, tão doce e tostadinho, cheirando a torrada com manteiga pela manhã, não se afogar na sua saliva alcalina? Logo você que com suas próprias mãos fabrica a vida. É isso que me pega, a verdade que reside em fazer eu mesma. Sempre construir, demolir, construir.
É uma sua escopeta: vincular-se aos outros por amor e depois deixar sua medida aberta como “sou quem você quiser que eu seja”. É uma sua última gota d’água: eu gemendo portando um uramaki na boca. E até o gergelim eu mastigo. Acordar embebida em álcool. Lado direito da cama. Você afinal não era um algodão que me absorvia de tudo. Era um sonho meio irreal meio persistente como a consciência de dentes armados contra o sono.
Sua filha nunca me perdoaria, tão amargurada quanto você. Neurose de bruxismo. Entende? Esses panos retalhados que jogo por cima. Quentes como sol pousado sobre a sombra. Casualmente dizer nada. Isso, aquilo, aquilo outro. Aquela coisa e tal. Os gestos pretensiosos de quem fuma. Aonde você vai com esses dedinhos desdenhosos? Com essa coisa vaga que portas aí? Que se pendure num balanço, você e seu cigarro, e rodem até a terceira transversal de Júpiter Um. Porque ele possui quatro luas, para o caso de uma bolota cinza não ser o suficiente. Precisar então de um tom lunático para fumar como quem não quer nada. É assim que você fuma e não bebe refrigerante. Coitada de mim, eu imaginava, que vou envelhecer debaixo de suas folhas. De superfície eu também nada quero. A luz refrata em você e me entendo turva. Num dia nublado eu rapidamente bateria à sua porta, os seios marcados por chupões, arte de outra pessoa, e você me guardaria em segredo. Antes ou depois de me devorar os olhos? De cortinas fechadas quase não te vejo. Você e seu café tal como o café que eu não bebo. Um tipo de ensaio hipnótico?
Aqui no meio do seu carro tão cheiroso e conexo ao seu corpo quase que literalmente, o chiclete na sua boca porque na verdade você é um trem descarrilhado e sabe disso.
Então você me olha assim, com olhos de baleia sempre aguados, e diz que eu sou esse poço horrível de deus-me-livre. Diz que eu sou a tatuagem no seu pulso, a permanência de uma banana aos críticos. Um mundo de pangeia. Aquém de Tordesilhas. Você me deseja mágica, tudo o que faz de tudo extraordinariamente estúpido. Mas também diz que não ama mais ninguém. Que amar nunca te deu troco. Acho que tudo volta a rebobinar, então você me olha assim.