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Gilberto Freyre sob inquisição: Parte um, o estilo

O exame de um autor poderia ser iniciado pelas palavras por ele empregadas. No caso de Gilberto Freyre, essa asserção talvez se faça mais visível, já que sua obra é muito bem reputada pela forma com que o historiador emprega as palavras. Muito embora minha leitura esteja concentrada sobre Casa-grande e senzala, diversas obras de Freyre poderiam ser descritas enquanto convergência de dois diferentes horizontes sócio-linguísticos: de um lado, a parte oriunda de um sistema oralmente constituído, cujas palavras são recolhidas de lugares diversos, (que se querem) marcadamente brasileiros, e vão desde a cozinha das baianas, os candomblés e macumbas, a medicina tradicional, histórias de assombração, conversas diretas com ex-escravos e descendentes das famílias senhoriais, nomes para a fauna e flora, as muitas viagens que o autor fez pelo interior do território brasileiro, além, claro, da consulta à erudição disponível. É esse horizonte erudito que irá caracterizar a outra parte do estilo de Freyre: nomes de autores estrangeiros, referência às leituras dos livros de viajantes europeus, livros de história, documentação oficial, teorias antropológicas e culturais, etc.


É necessário frisar, contudo, que a historiografia de Freyre constitui-se também enquanto etnografia, se desenvolvendo por meio de um saber particularmente diverso ao do discurso científico, que também é uma de suas partes constituintes (voltaremos a ele mais adiante). Quando digo que o trabalho de Freyre é também de etnógrafo, não me refiro apenas ao seu método de pesquisa (uma “observação participante”, conforme Malinowski fazia), mas por se caracterizar pela coleta e reconstrução de um sistema sociolinguístico alheio. Seu enorme catálogo de costumes, nomes e anedotas, recolhidos das fontes mais diversas, embora possam às vezes parecer um estilismo inútil e cientificamente despropositado, correspondem ao que Lévi-Strauss trata enquanto modalidades do pensamento selvagem, mitológico: “através desses agrupamento de coisas e seres, [se introduz] um princípio de ordem no universo”. Diz Lévi-Strauss, sobre esse saber que denomina de “ciência do concreto”:


Longe de serem, como muitas vezes se pretendeu, obra de uma "função fabuladora", que volta as costas à realidade, os mitos e os ritos oferecem como valor principal a ser preservado até hoje, de forma residual, modos de observação e de reflexão que foram (e sem dúvida permanecem) exatamente adaptados a descobertas de tipo determinado: as que a natureza autorizava, a partir da organização e da exploração especulativa do mundo sensível em termos de sensível.

A escrita de Casa-Grande e Senzala se desenvolve por meio de um procedimento de colagem, com as diversas anedotas interrompendo o fluxo expositivo, próprio da historiografia tradicional. Seu propósito, pelo que me parece, de modo algum seria de caráter ilustrativo ou exemplar, e muito menos ornamental, mas parte da montagem de um acervo etnográfico potente, que deseja efetuar, por dentro de um sistema de palavras e saberes tipicamente europeus, um enxerto estrangeiro, anômalo. Percebam: o discurso que pressupõe uma ordem às coisas, e não às coisas que pressupõe uma ordem em si mesmas. Como diz Lévi-Strauss, "essa exigência de ordem constitui a base do pensamento que denominamos primitivo, mas unicamente pelo fato de que constitui a base de todo pensamento”. Por isso que, bem mais do que um repertório heteróclito de histórias e palavras, em Casa-Grande e Senzala (e também em outros trabalhos), Freyre busca alcançar uma outra ordem das coisas, um outro princípio de percepção.


Como Ricardo Benzaquen assinala, a obra de Freyre “deixa de ser apenas um livro para transformar-se em uma espécie de casa-grande em miniatura, em uma voz longínqua mas genuína, legítima e metonímica representante daquela experiência que ele próprio analisava”, como se, mais do que delimitar a história do Brasil colonial, Freyre a colocasse para falar, como que um médium psicografando os seus mortos.


Esse aspecto de seu projeto intelectual se inscreve em um empreendimento mais largo, que se caracteriza pela busca de certa unidade nacional, a formulação de uma cultura verdadeiramente brasileira, coisa que é, muito provavelmente, o traço predominante de nossa produção intelectual, pelo menos desde o fim do século XIX até meados do século XX. Estando isso dito, vale retomar um outro horizonte sócio-linguístico que frequentemente reaparece em Casa-Grande e Senzala, e que demarca com clareza um outro registro de escrita, oriundo sobretudo da antropologia anglo-saxã e das teorias sociais e culturais alemães. A historiografia de Freyre opera em um nível heterodiscursivo: ora fala de xique-xiques, casa-grandes, da preta Maria Inácia, de touceira de bananeira, alpendres como que trepados em pernas de pau, senhores de engenho, vice-reis e bispos, óleo de baleia, farinha de mandioca, cantigas de berço, santos, terrinas de doce e melado, formigas e macacos, ora de McCollum, “decadência” ou “inferioridade” de raças, hiponutrição e diminuição da estatura, do peso e do perímetro torácico, Simmonds, descalcificação dos dentes e insuficiências tireóidea, Spengler, raça, condições bioquímicas, aquilo que Wissler chama de influência do biochemical content, meio físico, valor histórico-social, etc (todas as palavras aparecem grafadas conforme aparecem em Casa-Grande e Senzala).


Como é possível perceber, sua prosa alterna-se entre dois diferentes universos sociolinguísticos, muito claramente demarcados. De modo geral, diria que se repete a fórmula que Ricardo Piglia empregou para avaliar o estilo de Borges: paródia da linguagem oral (ou de uma linguagem oriunda da oralidade), dos saberes e histórias transmitidos por entre iletrados, e também paródia da erudição, repleto de citações, referências e modos de dizer oriundos da cultura letrada.


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