Matheus Ultra
CRÍTICA: BAIXO ESPLENDOR, DE MARÇAL AQUINO
No cinema hollywoodiano, a parte visual costuma ser responsabilidade do diretor, e não do roteirista, devendo este apenas indicar a ação do que se passará na tela. Além de visível continuador da prosa de Rubem Fonseca, Marçal Aquino também é roteirista, o que talvez explique o porquê de Baixo Esplendor fazer tão pouco uso de imagens. Sua aparição é breve, e quase sempre subordinada à necessidade da ação narrativa. As mais demoradas ocorrem durante as cenas de sexo, e mesmo essas são bastante sucintas, ainda que o gênero erótico seja bastante afeito ao tratamento visual. Na página 172, por exemplo, Nádia, a namorada do protagonista Miguel, é descrita “estendida na cama, molhando de saliva os dedos e manipulando os mamilos, vestida apenas com uma calcinha preta”. O trecho evoca um retrato breve, e em seguida o narrador faz aquilo que faz com muita aptidão, narrar ao leitor o que sucedeu-se: Nádia “afasta [a calcinha] para receber ali, na junção das coxas, os beijos dele, que começaram suaves - o roçar da asa de uma borboleta -, depois se intensificaram, se encresparam, se desesperaram; já nem era beijo esse encontro frenético de lábios untados de saliva e muco”. A descrição do sexo em Aquino facilmente desemboca na metáfora, como os beijos que começam em faéricas borboletadas, e se intensificam até atingirem uma expressão metonímica, com saliva e muco. Um passa para o outro sem qualquer dificuldade, de modo que os momentos de foda naturalista não diferem muito do idílio sentimental em que Miguel e Nadia vivem.
O relacionamento do casal é basicamente um relacionamento da carne, que não ultrapassa o idílio pornográfico. Ainda que se amem quase que à primeira vista, como se fossem duas almas gêmeas, esse amor se contenta com as necessidades da alcova. Não demonstram ter muita coisa em comum, e talvez por isso que quase não gastem tempo conversando. Toda palavra que sai da boca de Nádia, cuja caracterização se resume a ser um objeto dotado de sensualidade e volúpia, parece ser apenas um outro modo de confirmar os encantos de seu corpo. Nas conversas entre ela e Miguel, a função fática predomina, como se não tivessem nada a dizer um ao outro. Suas bocas servem para lamber e chupar; as palavras necessárias em tal gênero de relação são apenas os gemidos e berros capazes de denotar o fervor sexual. Quando o escritor decide colocá-los para viver uma pacata vida familiar, abrigando os dois sob um mesmo teto como marido e mulher, o idílio erótico se esvazia ainda mais e somos tomados de vez pela inequívoca sensação de farsa, como se em um happy ending de um conto de fada erótico.
A desinteressante história de amor de Miguel e Nádia, contudo, tem como benefício acontecer em meio a tensão existente entre dois grupos rivais, a polícia, para quem Miguel trabalha disfarçado, e a quadrilha liderada por Ingo, o irmão de Nádia. A montagem antropológica de Baixo Esplendor é o ponto forte da novela, uma espécie de descrição densa de um mundo do crime com uma estrutura social autônoma, um corpo hierárquico complexo e dotado de conflitos entre as partes. O mais cativante é que esse mundo não aparece simplesmente enquanto na margem da lei, mas convivendo dentro dela, coisa que apaga qualquer possibilidade de delimitar-se uma fronteira clara entre eles. Miguel, que está infiltrado na quadrilha enquanto agente duplo da polícia, incorpora a convivência mútua desses dois pólos mutuamente excludentes. Torna-se amigo e confidente de Ingo, que lhe apresenta a sua irmã Nádia. Fica dividido entre o amor e o compromisso com a lei. A partir daí, a trama desenvolve-se.
Sobre o plano geral da obra, é preciso reconhecer que Marçal Aquino é um escritor muito competente. Cada elemento da novela é orientado por uma economia narrativa bastante austera, como se uma navalha tivesse removido tudo que não fosse estritamente necessário para o seu funcionamento. A temporalidade alinear do relato, que poderia causar alguma confusão entre os episódios narrados, encontra-se encadeada com perfeição, sem deixar nenhuma ponta solta, e é prova inconteste da habilidade artesanal de Aquino.
Essa acuidade técnica, que será muito celebrada pelos leitores ávidos pelas formas prontas, também deixa evidente que Baixo Esplendor é fruto de certa confusão do autor. Vejam bem: a novela é uma espécie de Romeu e Julieta, uma história de amor vivida por entre a cisão de duas famílias, a lei e o crime. O romance de Nádia e Miguel, contudo, carece de qualquer substância, quase como se fosse um implante alienígena dentro da rigorosa economia narrativa do livro, que se sustenta somente pela delicada posição que Miguel ocupa na quadrilha enquanto agente-duplo. E se o amor entre homem e mulher inexiste para além dos usos que seus corpos fazem um do outro, não é assim com o amor entre Miguel e Ingo, que desenvolve-se de forma muito mais vívida por dentro das disputas entre a lei e o crime.
Se a história do romance não nos interessa por conta do comércio entre Miguel e Nádia, exclusivamente carnal e desprovido de afetos concretos, é porque o romance entre os dois é apenas o simulacro em que se realiza o amor platônico de Miguel e Ingo, os verdadeiros Romeu e a Julieta de Baixo Esplendor.