F. M. Bonato
Aqui jaz um amor
E agora, meu filho, o que será de você? Toquinho sentiu nessas palavras o peso da morte do amigo. Sua mãe, ao telefone, estava imensamente preocupada com seu futuro. Toquinho já não era mais garoto. Devia muito de sua vida e seus conhecimentos à Vinicius. Há mais de um ano que o poeta sofria de uma isquemia cerebral, modificando sua relação com o mundo. Sua família e amigos não o abandonaram em momento algum. Toquinho, inclusive, chegou a acolher Vinicius em sua própria casa. Com as complicações do amigo, começava a vislumbrar a possibilidade de uma carreira solo, mas de alguma forma sempre rejeitava a ideia: - Vinicius ainda está aqui, Vinicius ainda está aqui, dizia a si mesmo. Agora não estava mais. A pergunta de sua mãe ao telefone trouxe ao compositor um grande vazio. Toquinho estava na casa do falecido quando recebeu essa ligação. Ao final da conversa, sentou-se ao sofá e pôs-se a refletir. Entendeu enfim que todos os diálogos e músicas realizadas entre ele e o poeta eram agora coisa do passado. Marcaram época, sem dúvida, mas tornaram-se efetivamente passado. Uma música inédita pelos dois não era mais possível. Lembrou que naquele mesmo sofá que estava sentado, anos antes, encontrou o amigo desolado após os infinitos problemas de uma festa que tinha realizado em sua casa. Sentou-se ao seu lado e, se recusando a ver Vinicius daquela forma, Toquinho entregou-lhe um violão e começou a desenhar uns acordes. Saiu assim de suas notas o começo de Tristeza, uma das músicas mais icônicas gravadas pela dupla. Vinicius, antes desanimado, permitiu-se tocar aqueles acordes com seu amigo e o acompanhou no cantarolar. Transformou-se assim a melancolia daquele ambiente em uma derradeira compaixão. No ato estava a sabedoria de ouro que Vinicius tanto transmitia: - É preciso amar, e amar muito. Amar 24 horas por dia. Naquele momento de dificuldade para o poeta, Toquinho tentava lhe retribuir um pouco de seu amor. Vinicius, ao término da canção, virou-se para o amigo e disse: - É, meu amigo, só resta uma certeza, é preciso acabar com essa tristeza. É preciso inventar de novo o amor. E agora, nesse mesmo sofá em que tudo isso aconteceu, Toquinho tentava conter o choro. Dez anos de amizade é muito tempo, pensava. Vinicius lhe ensinou o mundo. Ensinou a chegar no horário, coisa que Toquinho antes era terrível, totalmente irresponsável. Ensinou também a ensaiar, coisa que Toquinho detestava, achava desnecessário. Ensinou inclusive a ser mais jovem, mesmo sendo ele mais velho que Toquinho. Mas ensinou, principalmente, a dar valor ao som da palavra em cada nota da melodia. Na vida existia um antes e depois de Vinicius. Dez anos de amizade e dez anos de composições. Toquinho era agora outro homem, quase um formado na arte da vida e da boemia, mais entendido sobre suas capacidades e limitações. Fez inúmeras composições para as letras de Vinicius, assim como também fez inúmeros arranjos para composições de Vinicius. Em determinado momento aconteceu até aquilo que ninguém esperava, fazer ele uma letra que seria aprovada por Vinicius. Os momentos de criação eram infinitos em sua memória. Tantas coisas que aconteceram entre ele e o poeta que seu coração não sabia medir. Algum legado daquilo ficaria. Tinham também as coisas que ficavam somente para os dois, no silêncio recíproco daquela amizade. Não se poderia revelar tudo que Vinicius fazia ao grande público, apesar dele levar algumas famas que eram muito justas à sua persona. Nisso tudo, pensou Toquinho, com certeza há também muitas coisas que foram esquecidas. A partir de determinado momento na vida os contextos se esvaem, e ficam somente as imagens daquele passado perdido. Lembrou Toquinho de muitas composições que não deram frutos, seja pela letra, pelo arranjo ou tudo junto. Composições que não chegaram ao nível de produção que aqueles dois exigiam. Lembrou até de composições bem sucedidas, mas que por um motivo ou por outro nunca se tornaram públicas. Uma em específico possuía todos os acordes já formados e uma levada característica. Vinicius, porém, acabou perdendo a letra da composição, deixando a mesma relegada ao esquecimento. Agora, era duro para Toquinho ficar sentado naquele sofá de tantas memórias. Levantou-se e foi buscar um copo d’água, ainda na tentativa de conter o choro. Decidiu que não sentaria mais naquele sofá, e foi rodar um pouco pela casa, numa de suas últimas visitas àquele lugar. Observava os livros com atenção, estantes inteiras apenas de literatura nacional, com tudo que havia de melhor: crônicas, poesias, contos, romances e até cartas. Ao lado da estante havia um quadro de um barco, uma pintura sem nada de fenomenal. Navegar é preciso, viver não é preciso, lembrou Toquinho aleatoriamente desses versos. O quadro poderia ser o quadro da casa de qualquer pessoa, não existia nele nenhum traço específico da personalidade de ninguém. Para Vinicius, pensou Toco em seguida, navegar só é preciso se navegar for o mais puro ato de amor. Além de tudo, o quadro estava levemente torto, Vinicius gostava mesmo era de trazer à sua casa uma ideia de movimento, para imprimir vivacidade ao ambiente. O amor é preciso, concluiu Toquinho, e novamente voltou a se emocionar, se direcionando à janela para mais uma vez conter o choro. Quantas histórias existem para uma janela aberta na casa de um poeta? Ainda mais se ele for um fumante de marca maior, como era o caso de Vinicius. O mármore continha marcas dos inúmeros cigarros ali fumados. Toquinho podia até sentir o cheiro. É o cheiro do ócio, pensou. Cheiro do ócio que não existe mais, do ócio de um passado que não retornará jamais, pensou mais alto. Ah, Toco, se você se permitisse ao menos uma lágrima nesse momento!, Vinicius lhe diria, provavelmente. Mas Toquinho ainda resistia. Voltou à estante de livros, o lugar da casa que mais distraía sua alma naquele momento. Em meio ao monte de livros, em que a poesia era dominante, encontrava-se um desconectado de tudo, A grande transformação, de Karl Polanyi. Vinicius era diplomata do Itamaraty, chegou no Rio com essa fama. Tinha vida feita, o dinheiro que queria, as mulheres já a seus pés, e tudo que se podia imaginar. Mesmo assim, decidiu arriscar tudo pelo amor à poesia. Tinha como primeira inspiração o inesquecível Jayme Ovalle. Depois, formou uma dupla muito prolífera com Baden Powell. Tom Jobim também entrou no jogo. Após tudo isso, ainda houve tempo para dez longos anos de produção ao lado de Toquinho, que agora puxava o livro do Polanyi. Era impossível não ter curiosidade sobre quais seriam as anotações daquele Vinicius diplomata em um livro como esse, pois um livro como esse só poderia estar ali devido ao Vinicius diplomata. Aquelas páginas pareciam chamar Toquinho a visitá-las. Abriu o livro e percebeu que no ato caiu um pequeno papel dobrado. Toquinho se abaixou para pegar. Era um papel velho, meio amarelado, levemente consumido pelas cinzas de um cigarro. Toquinho o desdobrou. Dentre todos os livros que tinham naquela estante, puxou justo aquele que guardava a letra perdida daquela composição que ele ainda sabia os acordes. Vinicius pensava como um poeta. Guardou a letra da música em meio a outras palavras, mas no único livro que se distinguia dos demais em sua estante. Era como esconder um tesouro, em que o cenário poderia sempre lhe dar pistas de onde encontrá-lo: o único livro relacionado à sua vida e pensamento de diplomata. Vinicius, infelizmente, também tinha memória de poeta, e assim como esquecia seus versos, esquecia onde os guardava. Por isso a letra da música havia sido perdida. Toquinho, emocionado, foi até a sala e sentou-se novamente naquele sofá, agora com a letra e um violão que estava por perto. Ensaiava os acordes para não errar na performance. Quando reiniciou a passagem das notas, começou a ler e cantar pela primeira vez aquela letra perdida:
Não te esqueças de mim
Quando um dia eu me for
Deposita uma flor
Onde disser assim
Aqui jaz um amor
Que foi lindo demais
Aqui jaz um amor em paz
E não busques jamais
Repousares enfim
Busca um velho punhal
De ferrugem ruim
E num instante fatal
Ao sentires teu fim
Vem deitar o teu sangue em mim
Toquinho se pôs a chorar.