Helena TM
A Partitura
Primeira vez que estou tocando um concertino, saindo dos moldes institucionais dos livros Suzuki e adentrando o vasto abismo das partituras soltas pelo mundo, espalhadas por livros e internet, escritos em qualquer época histórica, país, por qualquer pessoa. Um baú presentificado de partituras para mergulhar. Não tenho mais a partitura feita para mim, pro meu nível exato de capacidade, com o desafio milimetricamente medido de uma aprendizagem a mais. Cada nova música no Suzuki propondo dar um micro passo além, usar melhor o quarto dedo, tentar uma terceira posição, quem sabe um vibrato aqui... Agora não, uma jovem solta pelo mundo, munida da internet e da partitura de Küchler, sem saber o que vem pela frente.
Observo suas duas páginas de notas, suas inúmeras linhas e seus pequenos e frágeis compassos. Essa forma alienígena da qual vou tentar criar som. Parece que ela está dividida em partes... três linhas de notas brancas, três linhas de notas pintadas, e nos meus vastos conhecimentos musicais aprendi instintivamente a sentir menos ansiedade com as notas brancas, pois seus tempos longos permitem mais tempo para eu descobrir qual nota seguinte devo tocar. Começo lentamente por elas então... um longo sol, nenhum dedo é usado nessa nota, só uma corda solta, um arco longo, uma delícia. E tomo coragem pras notas seguintes. Si, ré, outro sol. Notas que só pensei quais eram agora pois na hora de tocar ainda me prendo aos números dos dedos, corda solta, dedo dois, corda solta, dedo três. E daí cria-se som. Tãããããããããã, tãããã, tãããã, tãããããããããã. E ao escrever isso volto à notação, transformo o som novamente em símbolo silencioso, tentando criar sentido, mas impossibilitada pela bidimensionalidade verbal. Silêncio, escrita, som, escrita, silêncio.
Depois da primeira descoberta de cada nota, tocada em sua integridade, tocada em sua individualidade, repito a sequência das notas de uma vez só. Emendo umas nas outras e vou seguindo, como um trem que acelera aos poucos, mas esse trem em particular chega em determinado ponto e se transporta de volta pro início dos trilhos, cada vez aumentando a velocidade, cada vez recomeçando. Chega num ponto em que domino a velocidade. Tão estranho o momento do domínio do tempo. Assim que chego nele sinto um vazio, pois abre-se uma nova porta que precisa ser explorada. A velocidade foi conquistada, o tempo no seu quesito óbvio, mas não a precisão temporal de cada uma das notas na sequência, o micro, o instante. Para tal é preciso expandir o tempo, abrir suas entranhas e dar-lhe espaço. Repito então, tudo mais lento, tentando encontrar exatidão nos detalhes. Me enrolo com o arco entre as cordas. Me enrolo com silêncios. Me enrolo com pausas. Me enrolo na longevidade de um som que precisa ter a mesma intensidade duradoura. Me enrolo com a longevidade de um som que precisa crescer e decrescer. E com outros, crio tensão e drama onde não há.
Passo adiante. Notas rápidas, seguidas, repetidas, tamtamtamtamtamtam vai subindo na escala e de repente cai dois tons e volta a subir tamtamtamtam, uma montanha russa sonora. Prendo a respiração enquanto a leitura consegue durar mais do que o esperado, e os dedos obedecem às notas e mechem, e o braço obedece a inércia e segue. E sinto uma felicidade infantil quando eventualmente tropeço em algum ponto. E abaixo os braços sorrindo, lembrando de inspirar o ar tão fresco, tão vivo o movimento, tão vivo o som.
Depois de quarenta minutos consigo terminar de percorrer a música desse modo primário. Depois de mais uma hora ela soa como algo coerente, os sons se interligam, os tempos vazios são precisos e marcam os espaçamentos sonoros, as notas estão intensas como devem ser. Depois de mais duas horas me sento com uma taça de vinho para escrever esse texto. Tempo dominado, tempo expandido, tempo descrito.
Ando estudando oralidade e mais precisamente me interessa debruçar sobre os processos de transcrição daquilo oral. Faz trezentos anos que estamos alertando uns aos outros sobre a inevitável extinção das culturais orais e sua inevitável substituição pela escrita. Primeiro com o gravador, depois com as câmeras, porém parece que cada vez mais estamos voltando à oralidade. Sento-me aqui para escrever sobre sons e as sensações ao tomar conhecimento da criação sonora e, recorrendo às palavras, me entendo como uma débil adicta do verbo. Penso nas palavras com mistério e reverência e dedico-lhes o poder de transcrever algumas horas do meu dia. Reconheço nelas a capacidade comunicativa, a intermediação da troca, o registro eterno e a textualização de mim. Quero tanto que sejam verossímeis. Quero tanto, mas tanto, que tenho medo de expandir o texto, como fiz com o tempo musical, e olhar suas entranhas. Ver nelas os erros grosseiros de uma transcrição ruim.
Termino aqui o texto.
Dois dias depois abro-o de novo com a coragem de quem irá expandir tempo e palavra. Releio. Insiro trechos que antes não havia, retiro outros. Os tempos se misturam entre a escrita e a reescrita, a palavra original e a palavra refeita. As frases são vistas como frases, sua estrutura sintática é checada, os erros eu reafirmo como estilo, “meu jeitinho”, talvez poética. As ideias antes semi-inconscientes são percebidas como afirmações, falo comigo mesma, sintetizo e organizo-as. O texto corre, mas marco seus tempos com meta comentários. Percebo que criei algo a partir de uma sensação não intencionalmente. Depois percebo que é um texto e possui características formais próprias por isso. Desdobro suas possibilidades, continuo mesmo após o final, o trem que volta ao início, o texto que nunca começou, o ouvinte que não ouviu e nem é ouvinte, é leitor. O texto não flui como a música, nunca será igual. Então não importa entrecortá-lo com um bisturi, vê-lo sangrar palavras que aos poucos perderão seu sentido. Um fim após fim que demarca a falta de fim possível.