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  • Foto do escritorLiteralistas


  • Foto do escritorBrayan Agnus

Um mundo convulsionado, caótico, abatido. Neste prisma, desvio, a linguagem vira vaidade, afinal, como representar o irrepresentável? O mundano, outrora tão monótono, agora é também incógnita e amnésia. Rabisco e penso em Esperando Godot, de S. Beckett, que evoca, da forma mais aguda e exigente, tais sintomas de uma cultura que manifesta sua crise. A espera, hoje, é óbvia, mas também oblíqua, porque há algo de particular que envolve essa alienação aprumada nos <limites> do convencional; quer dizer, o que é o humano, o que é emoção negativa, o que merece existir, o que é, reticências, viver. Um aguardo enfadonho porque tudo já foi anunciado; ora, a tristeza é infinita assim como a cidade se faz inóspita. É madrugada de quarta-feira e essa desolação, embora particular, em teoria não é única, afinal, o personagem diz: não sou o único que dela sofro, apesar de desconhecer os motivos. Dessa falta de luz, passagem de ar, se costura o brutalismo.


É noite. A possibilidade de alguma expectativa morreu tão crua como poderia quando primeiro lemos a máxima de F. Kafka. Esperança para nós, coisíssima nenhuma, é claro. Um tantinho de silêncio gritado em palavra logo se esvazia num algo um pouco mais abstrato. Quer dizer, na percepção de que a frustração que (me) guia é compartilhada como um rumor ruim; e que por mais que queiramos, é impossível escapar da sensação. Sensação, reticências.


Adjetivada pelas habituais palavras indignas; tristeza, incômodo, impotência; espera.


No entretanto, ainda sobre a descrição de algo, o que ele deseja, nada. Daí no exercício não expurgar as vaidades: ser, também, algo, interessante, moderno, e belo. As notas mentais perpassam pelos lugares mais difíceis, obscuros, que recusam desmistificar, por exemplo: agora a cor do silêncio. Porque de novo, só ele existe – aparentemente. A pandemia das pragas, em tese passageira, é eterna, uns ousam dizer, já que nada mais atemporal que o contemporâneo; e com isso parece fazer questão de deixar guardadas suas ruidosas cicatrizes, fará de qualquer cidade do terceiro mundo uma Berlim. Estávamos comentando, a margem é sempre tão derrotista. No ballet da misantropia (lição número 1: alguma ideologia urgentemente), é preciso cultivar o espírito, enfim (etc.); nas redes ser calado enquanto incorporado pelo concreto, nos avisa o inconsciente. Meu, talvez. A noite que trai.


Terça passada, compartilhei poemas com um amigo. A pandemia, os términos, o interesse noutras epistemologias proporciona oportunidades do gênero. Mandei: “Mayakovsky”, de Frank O’hara. Ele: “Torso arcaico de Apolo”, de Rainer Maria Rilke. E se comento esta trívia é porque nessa troca conheci tanto a conclusão desse texto quanto meu fôlego para os próximos. Penúltima nota, o mundo é grande, e desesperado, e particular. Parêntese. E a propósito da solitude e dos demais recifes, cogito, enfim, a conclusão de Rilke – traduzida por Manuel Bandeira: força é mudares de vida.


“VLADIMIR: Então, vamos embora. ESTRAGON: Vamos lá.

Não se mexem

Cortina.

  • Foto do escritorCaique Cabarroz

Aos 9 anos, Marcelinho começou a cortar o próprio cabelo. Cada corte no salão do bairro custava algo em torno de 20 reais. Se era necessário cortar o cabelo ao menos uma vez ao mês  —  corte batidinho assim, discreto, no padrão ideal do mercado de trabalho, estilo Primo Rico  —  durante o período de 12 meses seria possível poupar 240 reais. Daí não foi difícil começar a fazer a própria barba, mesmo quando das alterações hormonais da adolescência se viu impelido a adotar o estilo lenhador-urbano. O preço de um desodorante variava entre 10 e 12 reais, duas ou três latas ao mês, suficiente para suprimir completamente os odores sem a necessidade de comprar perfume ou mesmo de banhos diários, somavam 36. Seria possível realizar uma reserva substancial de longo prazo se aproveitasse das propriedades antissépticas do limão para higienizar a axila, um montante de quase 28.000 reais durante o período de vida   — em uma estimativa de 80 anos produtivos. A economia veio em bom momento, arrumou o primeiro emprego aos 18 anos. As caminhadas de 16km para manter o vale-transporte intacto exigiam uso reforçado de limão-desodorante, então decidiu começar a plantar seus próprios limoeiros. No início, é verdade, havia uma bicicleta, mas o desgaste dos pneus e a necessidade de lubrificar constantemente as correias se somavam aos custos da alimentação reforçado para compensar o exercício. Foi com o dinheiro da venda da bicicleta que Marcelinho comprou as sementes dos primeiros limoeiros. O emprego não trazia os rendimentos esperados. Apesar de trabalhar 12 horas diárias, 3x mais que seu contrato de menor aprendiz exigia de carga horária, o salário mínimo não possibilitava o crescimento exponencial de patrimônio planejado, mesmo com os benefícios de VR, VT e VA oferecidos pela empresa. Além do mais, trabalhar também dava gastos. As caminhadas até o trabalho gastavam a sola do tênis de modo que seria necessário comprar sempre um novo a cada semestre; ficavam esgarçadas e manchadas as costuram debaixo do braço das camisas por conta da acidez do limão. Depois de alguns meses, Marcelinho fazia mais dinheiro com os limões excedentes de sua produção do que com seu emprego no Atacadão. Pediu as contas, mas não sem antes carregar do escritório para casa todos os copos plásticos que juntou nos meses de trabalho para compor seu enxoval. Comprou, quase a contragosto  —  a essa altura já tinha dificuldades de diferenciar investimento de gastos  —  alguns hectares de fazenda. Agora produzindo toneladas diárias de limão, Marcelinho assumiu uma dieta restrita de chupar a fruta 7 vezes ao dia. Seus hábitos de higiene mais uma vez mudaram, agora seu banho semanal era realizado junto com a irrigação dos limoeiros  —  hábito criado por acidente já que não usava mais roupas enquanto trabalhava na terra, aliás, não usava mais roupas em momento algum. Antes dos 30 anos, Marcelinho já figurava na lista dos milionários mais excêntricos do país. Acumulava zeros na conta com a mesma facilidade que chupava um limão. Mas a vida ainda era azeda. Ser proprietário de monoculturas tem lá seus custos e não são poucos. Ainda que a margem de lucro da venda dos limões fosse de 1500%, nosso herói acredita que não seria possível economizar ainda mais. Com um monge, aprendeu a se alimentar por meio da absorção do prāna dos limoeiros. Também era capaz de meditar tranquilamente em qualquer lugar sob quaisquer condições, por isso botou a casa da fazenda para alugar no AirBnB. Mas ainda não era o bastante. Os impostos, os funcionários, os pesticidas e até mesmo os fertilizantes  —  devido às dimensões da fazenda e da restrição alimentícia, não conseguia mais adubar a terra apenas com as próprias fezes  —  tiravam o sono de Marcelinho. Vendeu a fazenda a um grupo de investidores chineses pelo dobro da avaliação de mercado. Dois dias depois deu entrada no monastério. Não existiam ganhos na vida monástica, é verdade, mas também não existiam custos. A alimentação era mais variada e rica que a dieta de limões que Marcelinho seguiu por 20 anos. Os demais prazeres carnais também eram proibidos, mas Marcelinho nunca manteve relações de nenhum tipo, amorosas ou sexuais, com outro ser humano em razão dos custos envolvidos. Foi a escolha mais racional. Morreu aos 126 anos odiado pelos demais monges graças ao seu hábito de estocar a própria urina. Em seu leito de morte, revelou a localização de seu tesouro a um Abade.

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